13 setembro 2007

Esclerose Múltipla e Família

Olá Time UPEM,

O texto que mostro a seguir foi apresentado no IV Encontro BCTRIMS, que foi em 2003. Apesar de já ter um tempo, acho que esse é um tema que deve ser sempre abordado, afinal, quem convive mais com a gente que a família?

Beijos.

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Esclerose Múltipla e Família
VITOR HAASE

O processo de adaptação psicossocial de portadores de esclerose múltipla (EM) e de suas famílias pode envolver pelo menos quatro tipo de influências, as quais interagem de modo bastante complexo. Em primeiro lugar precisam ser mencionadas as características da própria doença, tais como o comprometimento de indivíduos numa idade em que doenças crônicas não são normativas, bem como o alto grau de intrusividade e incerteza associado com o curso clínico.
A seguir, vem o modo como os envolvidos, pacientes e familiares, representam cognitivamente a situação, ou seja, suas percepções. As quais dependem, por sua vez, de características de personalidade, do perfil de habilidades e incapacidades, da disponibilidade de recursos materiais e sociais. bem como das crenças religiosas e pessoais.

Em terceiro lugar, influi a ecologia familiar, isto é, a situação de vida da família. Quando um membro da família padece de uma doença crônica, várias acomodações precisam ser feitas, envolvendo aspectos financeiros, moradia, assistência de saúde, lazer, cuidados e divisão de tarefas, relacionamentos conjugais e planejamento do futuro. Estas acomodações representam conciliações de interesses muitas vezes divergentes e têm um grande potencial para afetar a vida de todos os envolvidos. Finalmente, é preciso considerar a história das interações na família, assunto a que este pequeno artigo é dedicado.

A doença não acontece em um vácuo pessoal e social, mas constitui um evento na vida de um indivíduo e de uma família, os quais vão fazer de tudo para se adaptarem e continuarem se desenvolvendo, ou se realizando pessoalmente. Muitas vezes essas tentativas podem resultar em processos desadaptativos, criando um verdadeiro círculo vicioso, em que excessos e déficits comportamentais são retroalimentados. A doença constitui um evento na vida de pessoas, cujas interações eram caracterizadas por determinadas qualidades, boas ou más. A doença modifica o perfil de características do paciente, modificações estas que são percebidas, em maior ou menor grau, pelo próprio doente e por sua família.

No caso da EM o padrão de déficits pode consistir de fadiga e deficiências físicas (sensoriais e motoras), cognitivas (memória e funções executivas), bem como emocionais e motivacionais (sintomas depressivos, falta de iniciativa). O leque de excessos comportamentais varia desde labilidade emocional até raiva, revolta, hostilidade e agressividade. Estas modificações na personalidade do doente podem ser vivenciadas pela família de modo tal que o mesmo é percebido como menos competente, menos atraente, menos digno. Percepções estas que podem desencadear sentimentos ambíguos de perda de uma pessoa idealizada, de privação de reforçadores, associados a desamparo e auto-responsabilização.

Os familiares podem reagir com luto e sintomas depressivos, no que se refere à perda da pessoa idealizada, ou então com frustração e raiva face à nova realidade personificada pelo doente. Essas reações desencadeiam insegurança, e sentimentos de culpa, os quais vão dar a tom nas interações com o paciente. As conseqüências podem ser desastrosas, contribuindo para retroalimentar o perfil de déficits e excessos exibidos pelo paciente (vide Fig. 1). A família e o paciente podem, por exemplo, não compreender bem a natureza do sintoma fadiga, atribuindo o mesmo à "preguiça". A falta de compreensão quanto à natureza do sintoma fadiga pode fazer com que sejam estabelecidos critérios muito rígidos e exigentes de desempenho, os quais inevitavelmente não poderão ser cumpridos. O resultado será uma exacerbação da sensação de fracasso e impotência, contribuindo para focalizar a atenção dos envolvidos apenas nos aspectos deficitários do comportamento do paciente.

O reverso da moeda são os comportamentos de superproteção. Por acreditarem que o doente está muito mais incapacitado do que realmente ocorre, ou por sentimentos de culpa, ou por ambos, os familiares desenvolvem expectativas muito baixas quanto às suas reais possiblidades, fornecendo diversas formas auxilio das quais o paciente na realidade não precisaria. O resultado final aparece sob a forma de um acréscimo de incapacidade e dependência, contribuindo para desmoralizar o paciente e sua família. Se o indivíduo sofre de falta de iniciativa, por exemplo, quando alguém faz as coisas por ele, sua capacidade de iniciativa tende a diminuir e não a aumentar.

Tanto o modelo de exigência excessiva quanto o de superproteção contribuem para estabelecer um padrão coercivo de interações familiares, em que um tenta controlar o comportamento do outro. Como romper o ciclo vicioso? Tudo depende do grau de desadaptação. A abordagem reabilitadora se baseia no trabalho colaborativo com pacientes e familiares, utilizando procedimentos psicoeducacionais e procurando aumentar as percepções dos envolvidos quanto ao padrão de interações em que estão imersos, bem como quanto ao perfil de habilidades preservadas e incapacidades decorrentes da doença. Um aliado no processo de reabilitação é o fato de que, ao contrário do que se observa em outras condições neurológicas, a capacidade de insight e o potencial de participação social são áreas geralmente preservadas na EM, representando domínios onde o indivíduo pode continuar se realizando pessoalmente. Quando a capacidade de insight do paciente está comprometida, técnicas comportamentais implementadas com o auxílio da família podem dar resultado. Quando, entretanto, os relacionamentos familiares estão muito desgastados a abordagem reabilitadora pode ser contraproducente, pois demanda insight e exige trabalho colaborativo com o paciente ou com a família. Nesse caso, abordagens psicoterápicas, tais como a terapia sistêmica de família, podem ser mais úteis.

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